Thursday, November 21, 2019

A minha avó

Como todas as outras não era de agora.
Veio dum tempo conivente com
o pai a proibir de cortar o cabelo. Bom,
nunca o vi comprido na senhora.

Não é segredo que entre nós
pouco havia de concordância,
dada a tamanha distancia
mas queria nos bem a todos nós.

Veio dum tempo em que feita a quarta
teve de começar numa fabrica
para a família ajudar a sustentar
com seu recorrente pesar.

Mas garantiu outra história aos filhos
e enquanto gabava “os netos mais lindos
a nós repetia “estuda minha filha”
que só os estudos te elevam na vida.

Veio de um tempo em que a menina de chapéu
era ensinada para encantar e receber
mas ambiciosa e orgulhosa ela subiu
da fábrica aos escritórios e à loja deles.

A loja era dos avós mas todos sabemos
que a partilha era compartimentada
a parte social e física ao avô entregada,
ficou com ela a gerencia e governos.

Veio de um tempo duro e injusto,
e se era catolicamente crítica
era um cuidado que estendia à família
numa defesa justificada de instinto.

E se eu hoje me considerar melhor
por entender a falha da sociedade ao pobre
é em parte porque a minha avó
entre mais tornaram-na mais uniforme.

Eu não preciso de aceitar
nenhuma das suas ideias
para a minha avó admirar,
uma mulher de armas.

Porque a minha avó veio de outrora
mas a ela eu devo muito da melhora
e por ela a minha alma chora.

Friday, November 15, 2019

Promessas encharcadas em progesterona

Passo dedos sobre o aquário
que arrebatou a minha vista
quando tento calçar um sapato
numa dança de equilibrista.

Vamos-nos comprar comida bio,
vou cozinhar fresco todos dias,
pendurar-me em ouro num fio
p'ra que te estiques e sorrias.

Mas um furacão enevoado
arrancou o prometido então
ficou'o cambalear bocejado.

Entre a avalanche de fraldas
e potes prépreparados estão
estes braços em que te resguardas.

Friday, November 8, 2019

A lua brilha p'r'ó mar e nós banhamos neles


O vapor esbate as cores do crepúsculo,
a lua puxa uma nuvem p'ra se envolver
e espreita o reflexo de lábio mordido,
o mar moldura-lhe a luz e fa-la ascender.

Ela pisca-lhe o olho, sorri claridade.
Ele radiante segreda-lhe: "Tu és linda."
Ela acredita que p'ra ele é verdade,
sobe ao palco de estrelas e cintila.

Não é que ela tenha de ser a mais brilhante,
nem esconderá as crateras da sua face,
mas deseja ilumina-lo profundamente.

Não é que ela viva para ele, mas nele
encontra o calor para se manter ardente
e cobertura p'ra se expor nua em arte.

Sunday, November 3, 2019

O espelho duplamente vintage

O espelho é me amigo distante,
que visito a custo ou por engano,
e não reconheço quem me apresenta
nem me recebe com seu cortez encanto.

Os cabelos que não perderam clareza
insolentes esnobam cor por complecto.
As linhas que pecavam pela doçura
caem num desleixo de rumo incerto.

Não me lembro de quando parei de correr,
no alcance da hegemonia de ser,
para sentir o chão sob o corpo ceder.

Talvez se parasse mais na sua frente
testemunharia o virar do vento
mas francamente quem tem p'ra isso tempo?